ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA NA AMAZÔNIA E A CABANAGEM
Quando se fala da presença africana na Amazônia, há, muitas vezes, certo espanto. Ainda é muito difundida a imagem de uma região Norte bastante "despovoada" no período colonial, com poucos ocupantes brancos em meio às populações indígenas.
A escravidão negra na Amazônia foi, de fato, menos expressiva em termos quantitativos quando comparada a outras regiões do país. Contudo, o papel dos escravos na criação de formas originais de vida e de adaptação às condições de vida na Amazônia não foi menor.
As marcas dessas formas de vida e das lutas contra a escravidão estão presentes até hoje na memória dos quilombolas.
Os primeiros negros chegaram à Amazônia por intermédio de ingleses, ainda no início do século XVII. Os ingleses, assim como franceses, holandeses e espanhóis, tentaram, por diversas vezes, apossar-se do extremo norte do Brasil.
Os colonos portugueses apenas se fizeram mais presentes na região amazônica a partir do século XVII tendo como principal preocupação defender e ocupar o território. Mas, para essa ocupação e também para a exploração econômica da região, a falta de mão-de-obra colocou-se, desde o início, como um problema. Num primeiro momento, a solução encontrada foi a escravização dos indígenas, os chamados "negros da terra".
A utilização de índios como escravos, apesar de usual, enfrentava resistências. A Igreja Católica, por exemplo, condenava essa prática. Existia inclusive uma lei, datada de 1680, que proibia a escravização de índios nas terras da colônia. Porém, os próprios chefes de província ignoravam essas proibições, o que gerava sérios conflitos entre os colonos e as diversas missões religiosas atuantes na região.
Para contornar os conflitos e garantir a mão-de-obra, a solução foi a adoção da escravidão de negros já existente em outras regiões do Brasil.
O fluxo de escravos negros aumentou consideravelmente a partir da segunda metade do século XVIII, quando se formou o Estado do Grão-Pará e Maranhão, vinculando a administração da região diretamente a Portugal.
A compra de escravos negros foi subsidiada pela Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão em troca do monopólio do comércio na região amazônica. No período que vigorou de 1755 a 1778, a companhia trouxe à região mais de 25 mil escravos. Desse total, aproximadamente 15 mil se estabeleceram onde hoje é o Estado do Pará.
Com a extinção da companhia, o comércio de escravos continuou, porém em menor número. A partir desta época, os negros passaram a vir de outras regiões do país ou através do contrabando. O tráfico permaneceu ativo até as primeiras décadas do século XIX.
Os escravos trazidos da África trabalharam em atividades agrícolas (nas fazendas de cana-de-açúcar, de algodão, de cacau e de tabaco), no extrativismo das chamadas "drogas do sertão" (como a canela, a baunilha, o cravo, as raízes aromáticas, a salsaparrilha, o urucum e as sementes oleaginosas), além de servirem em trabalhos domésticos e em construções urbanas públicas e privadas.
O aumento da oferta de mão-de-obra africana na Amazônia não eliminou a escravidão indígena. "Negros da terra" e "negros da África" dividiram, por muito tempo, o mesmo mundo de trabalho.
O contato e a interação social entre os índios e os negros resultaram na incorporação e na troca de elementos da cultura material e imaterial. Os quilombolas aprenderam com os índios alguns segredos das "matas" permitindo-lhes fugir e vencer os obstáculos com mais êxito. Além disso, lutaram juntos numa das principais insurreições populares do país no século XIX, a Cabanagem.
Mesmo estando sujeitos a uma série de limitações e de violências impostas pelo sistema escravista, os escravos negros buscaram a construção de certos espaços que lhes permitissem conquistar momentos de autonomia e de liberdade. Exemplos disso são as fugas, as rebeliões e, principalmente, os quilombos. Estes são fatos que demonstram que o escravo jamais exerceu um papel passivo na história brasileira
Foi ao longo dos séculos XVIII e XIX que se formou a maior parte dos quilombos no atual Estado do Pará. Ao fugir para esses aldeamentos, conhecidos também por mocambos, o escravo conquistava a garantia de autonomia e de liberdade de ação e de movimento.
Segundo o historiador Vicente Salles, a fuga para os mocambos representava, no início, uma solução difícil e arriscada. O escravo aventurava-se sozinho, indo abrigar-se, muitas vezes, em aldeias indígenas.
Com o tempo, aprenderam a se organizar. A fuga passou a ser uma estratégia coletiva de resistência ao regime escravista. Surgiram personagens como os acoutadores, que se encarregavam de dirigir os grupos de fugitivos para os quilombos e se tornaram os principais inimigos dos proprietários de escravos.
Organizada a fuga, os quilombos cresceram rapidamente, pois eram o principal foco de atração dos negros que escapavam das cidades e das fazendas. A fuga de escravos tornou-se um processo contínuo e rotineiro a partir da segunda metade do século XVIII e início do XIX, quando também aumentaram as notícias sobre os quilombos na imprensa local.
A desestabilização político-econômica ajudou nesse processo. A decadência dos engenhos de cana-de-açúcar, por exemplo, facilitou a fuga dos escravos. Além disso, após a independência do Brasil, as crises políticas em Belém, capital da província, possibilitaram a fuga em massa dos escravos que viviam na área urbana.
Os mocambos passaram a ser tão numerosos que, não raro, a imprensa alegava que havia mais negros morando em quilombos do que em cativeiros.
A destruição dos quilombos, portanto, passou a ser uma prioridade do governo. Diversas expedições foram organizadas a fim de capturar os negros fugidos. Em 1841, uma corporação especial de capitães-do-mato foi criada para dar maior cobertura às ações.
Vicente Salles aponta cinco principais regiões do Grão-Pará onde se concentraram os quilombos nos séculos XVIII e XIX: entre os Rios Gurupi e Turiaçu; na bacia do Rio Tocantins; entre os Rios Mojuim e Mocajuba; na bacia do Rio Trombetas e na chamada Guiana Brasileira.
Gurupi e Turiaçu
Entre os Rios Gurupi e Turiaçu, situados na divisa com o atual Estado do Maranhão, havia um porto que servia ao comércio negreiro. A região era um importante núcleo intermediário de migração de escravos das províncias do Grão-Pará e do Maranhão.
Os escravos desta região fugiram para as florestas próximas, principalmente no vale do Maracasumé, onde, em meados do século XIX, encontraram e tornaram conhecidas as minas de ouro de aluvião.
Ainda hoje se encontram comunidades quilombolas nessa região, como Camiranga e Bela Aurora, que já estão com suas terras tituladas.
Bacia dos Rios Guajará e Tocantins
Outra região de grande concentração de quilombos foram as bacias dos Rios Acará, Moju, Capim, Igarapé-Mirim e Tocantins, no nordeste paraense. Neste local encontravam-se lavouras de cana-de-açúcar com grande concentração de mão-de-obra escrava.
Por ser uma região muito próxima a Belém, a nucleação e a fuga organizada de escravos eram favorecidas. Foi nela que se localizou um dos maiores mocambos paraenses: o Caxiú. Na época da Cabanagem, os negros desse quilombo aderiram em massa ao movimento, liderados pelo líder negro Félix.
Muitos mocambos cresceram tanto que acabaram se tornando vilas, como o de Caraparu, nas proximidades de Belém. Este quilombo deu origem às atuais comunidades de Macapazinho, Boa Vista do Itá , Conceição do Itá e São Francisco do Itá.
Rios Mojuim e Mocajuba
Uma terceira região de concentração de quilombos foi a dos Rios Mojuim e Mocajuba, onde hoje se localizam os municípios de São Caetano de Odivelas e de Curuçá. No caminho de Mocajuba a Belém havia vários mocambos menores que ajudavam a despistar os capitães-do-mato do caminho até o quilombo de Mocajuba.
Bacia do Rio Trombetas
Os maiores mocambos nesta região estavam situados nos altos dos Rios Trombetas, Erepecuru e Curuá, em trechos navegáveis, acima das cachoeiras. A escolha do lugar era estratégica. Tratava-se de áreas onde a captura era difícil, mas possibilitavam o plantio de alguns produtos para a subsistência e também o pequeno comércio realizado por meio de intermediários ou diretamente nas cidades da região.
Guiana Brasileira (Amapá)
Na região conhecida como Guiana Brasileira (atual Estado do Amapá) havia vários quilombos nas margens do rio Anauerapucu. Grande era o intercâmbio e a comunicação entre os negros do Brasil e da Guiana Francesa.
FONTES CONSULTADAS
Funes , Eurípides A.
Nasci nas matas, nunca tive senhor - história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas. Tese de Doutorado apresentada na FFLCH/USP, São Paulo, 1995.
Lima, Leandro Mahalem de.
Os índios e a Cabanagem. Relatório de Iniciação Científica apresentada à FAPESP, São Paulo, 2003.
Queiroz, Jonas M. & Gomes, Flávio.
"Em outras margens: escravidão africana, fronteiras e etnicidade na Amazônia". In: Gomes, F. & Del Priore, M. (orgs.)
Os senhores dos rios - Amazônia, margens e história, Rio de Janeiro, Elsevier/Campus, 2004, p. 141-163.
Salles, Vicente.
O negro no Pará sob o regime de escravidão. Rio de Janeiro, FGV/UFPA, 1971.
Quando se fala da presença africana na Amazônia, há, muitas vezes, certo espanto. Ainda é muito difundida a imagem de uma região Norte bastante "despovoada" no período colonial, com poucos ocupantes brancos em meio às populações indígenas.
A escravidão negra na Amazônia foi, de fato, menos expressiva em termos quantitativos quando comparada a outras regiões do país. Contudo, o papel dos escravos na criação de formas originais de vida e de adaptação às condições de vida na Amazônia não foi menor.
As marcas dessas formas de vida e das lutas contra a escravidão estão presentes até hoje na memória dos quilombolas.
Os primeiros negros chegaram à Amazônia por intermédio de ingleses, ainda no início do século XVII. Os ingleses, assim como franceses, holandeses e espanhóis, tentaram, por diversas vezes, apossar-se do extremo norte do Brasil.
Os colonos portugueses apenas se fizeram mais presentes na região amazônica a partir do século XVII tendo como principal preocupação defender e ocupar o território. Mas, para essa ocupação e também para a exploração econômica da região, a falta de mão-de-obra colocou-se, desde o início, como um problema. Num primeiro momento, a solução encontrada foi a escravização dos indígenas, os chamados "negros da terra".
A utilização de índios como escravos, apesar de usual, enfrentava resistências. A Igreja Católica, por exemplo, condenava essa prática. Existia inclusive uma lei, datada de 1680, que proibia a escravização de índios nas terras da colônia. Porém, os próprios chefes de província ignoravam essas proibições, o que gerava sérios conflitos entre os colonos e as diversas missões religiosas atuantes na região.
Para contornar os conflitos e garantir a mão-de-obra, a solução foi a adoção da escravidão de negros já existente em outras regiões do Brasil.
O fluxo de escravos negros aumentou consideravelmente a partir da segunda metade do século XVIII, quando se formou o Estado do Grão-Pará e Maranhão, vinculando a administração da região diretamente a Portugal.
A compra de escravos negros foi subsidiada pela Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão em troca do monopólio do comércio na região amazônica. No período que vigorou de 1755 a 1778, a companhia trouxe à região mais de 25 mil escravos. Desse total, aproximadamente 15 mil se estabeleceram onde hoje é o Estado do Pará.
Com a extinção da companhia, o comércio de escravos continuou, porém em menor número. A partir desta época, os negros passaram a vir de outras regiões do país ou através do contrabando. O tráfico permaneceu ativo até as primeiras décadas do século XIX.
Os escravos trazidos da África trabalharam em atividades agrícolas (nas fazendas de cana-de-açúcar, de algodão, de cacau e de tabaco), no extrativismo das chamadas "drogas do sertão" (como a canela, a baunilha, o cravo, as raízes aromáticas, a salsaparrilha, o urucum e as sementes oleaginosas), além de servirem em trabalhos domésticos e em construções urbanas públicas e privadas.
O aumento da oferta de mão-de-obra africana na Amazônia não eliminou a escravidão indígena. "Negros da terra" e "negros da África" dividiram, por muito tempo, o mesmo mundo de trabalho.
O contato e a interação social entre os índios e os negros resultaram na incorporação e na troca de elementos da cultura material e imaterial. Os quilombolas aprenderam com os índios alguns segredos das "matas" permitindo-lhes fugir e vencer os obstáculos com mais êxito. Além disso, lutaram juntos numa das principais insurreições populares do país no século XIX, a Cabanagem.
Mesmo estando sujeitos a uma série de limitações e de violências impostas pelo sistema escravista, os escravos negros buscaram a construção de certos espaços que lhes permitissem conquistar momentos de autonomia e de liberdade. Exemplos disso são as fugas, as rebeliões e, principalmente, os quilombos. Estes são fatos que demonstram que o escravo jamais exerceu um papel passivo na história brasileira
Foi ao longo dos séculos XVIII e XIX que se formou a maior parte dos quilombos no atual Estado do Pará. Ao fugir para esses aldeamentos, conhecidos também por mocambos, o escravo conquistava a garantia de autonomia e de liberdade de ação e de movimento.
Segundo o historiador Vicente Salles, a fuga para os mocambos representava, no início, uma solução difícil e arriscada. O escravo aventurava-se sozinho, indo abrigar-se, muitas vezes, em aldeias indígenas.
Com o tempo, aprenderam a se organizar. A fuga passou a ser uma estratégia coletiva de resistência ao regime escravista. Surgiram personagens como os acoutadores, que se encarregavam de dirigir os grupos de fugitivos para os quilombos e se tornaram os principais inimigos dos proprietários de escravos.
Organizada a fuga, os quilombos cresceram rapidamente, pois eram o principal foco de atração dos negros que escapavam das cidades e das fazendas. A fuga de escravos tornou-se um processo contínuo e rotineiro a partir da segunda metade do século XVIII e início do XIX, quando também aumentaram as notícias sobre os quilombos na imprensa local.
A desestabilização político-econômica ajudou nesse processo. A decadência dos engenhos de cana-de-açúcar, por exemplo, facilitou a fuga dos escravos. Além disso, após a independência do Brasil, as crises políticas em Belém, capital da província, possibilitaram a fuga em massa dos escravos que viviam na área urbana.
Os mocambos passaram a ser tão numerosos que, não raro, a imprensa alegava que havia mais negros morando em quilombos do que em cativeiros.
A destruição dos quilombos, portanto, passou a ser uma prioridade do governo. Diversas expedições foram organizadas a fim de capturar os negros fugidos. Em 1841, uma corporação especial de capitães-do-mato foi criada para dar maior cobertura às ações.
Vicente Salles aponta cinco principais regiões do Grão-Pará onde se concentraram os quilombos nos séculos XVIII e XIX: entre os Rios Gurupi e Turiaçu; na bacia do Rio Tocantins; entre os Rios Mojuim e Mocajuba; na bacia do Rio Trombetas e na chamada Guiana Brasileira.
Gurupi e Turiaçu
Entre os Rios Gurupi e Turiaçu, situados na divisa com o atual Estado do Maranhão, havia um porto que servia ao comércio negreiro. A região era um importante núcleo intermediário de migração de escravos das províncias do Grão-Pará e do Maranhão.
Os escravos desta região fugiram para as florestas próximas, principalmente no vale do Maracasumé, onde, em meados do século XIX, encontraram e tornaram conhecidas as minas de ouro de aluvião.
Ainda hoje se encontram comunidades quilombolas nessa região, como Camiranga e Bela Aurora, que já estão com suas terras tituladas.
Bacia dos Rios Guajará e Tocantins
Outra região de grande concentração de quilombos foram as bacias dos Rios Acará, Moju, Capim, Igarapé-Mirim e Tocantins, no nordeste paraense. Neste local encontravam-se lavouras de cana-de-açúcar com grande concentração de mão-de-obra escrava.
Por ser uma região muito próxima a Belém, a nucleação e a fuga organizada de escravos eram favorecidas. Foi nela que se localizou um dos maiores mocambos paraenses: o Caxiú. Na época da Cabanagem, os negros desse quilombo aderiram em massa ao movimento, liderados pelo líder negro Félix.
Muitos mocambos cresceram tanto que acabaram se tornando vilas, como o de Caraparu, nas proximidades de Belém. Este quilombo deu origem às atuais comunidades de Macapazinho, Boa Vista do Itá , Conceição do Itá e São Francisco do Itá.
Rios Mojuim e Mocajuba
Uma terceira região de concentração de quilombos foi a dos Rios Mojuim e Mocajuba, onde hoje se localizam os municípios de São Caetano de Odivelas e de Curuçá. No caminho de Mocajuba a Belém havia vários mocambos menores que ajudavam a despistar os capitães-do-mato do caminho até o quilombo de Mocajuba.
Bacia do Rio Trombetas
Os maiores mocambos nesta região estavam situados nos altos dos Rios Trombetas, Erepecuru e Curuá, em trechos navegáveis, acima das cachoeiras. A escolha do lugar era estratégica. Tratava-se de áreas onde a captura era difícil, mas possibilitavam o plantio de alguns produtos para a subsistência e também o pequeno comércio realizado por meio de intermediários ou diretamente nas cidades da região.
Guiana Brasileira (Amapá)
Na região conhecida como Guiana Brasileira (atual Estado do Amapá) havia vários quilombos nas margens do rio Anauerapucu. Grande era o intercâmbio e a comunicação entre os negros do Brasil e da Guiana Francesa.
FONTES CONSULTADAS
Funes , Eurípides A.
Nasci nas matas, nunca tive senhor - história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas. Tese de Doutorado apresentada na FFLCH/USP, São Paulo, 1995.
Lima, Leandro Mahalem de.
Os índios e a Cabanagem. Relatório de Iniciação Científica apresentada à FAPESP, São Paulo, 2003.
Queiroz, Jonas M. & Gomes, Flávio.
"Em outras margens: escravidão africana, fronteiras e etnicidade na Amazônia". In: Gomes, F. & Del Priore, M. (orgs.)
Os senhores dos rios - Amazônia, margens e história, Rio de Janeiro, Elsevier/Campus, 2004, p. 141-163.
Salles, Vicente.
O negro no Pará sob o regime de escravidão. Rio de Janeiro, FGV/UFPA, 1971.